POR DETRÁS DE CADA MURO
O Triunfo da Morte
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Pieter Bruegel, O Velho
(Obrigada, Wikipédia!)
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POR DETRÁS DE CADA MURO
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Por detrás de cada muro,
Debaixo de cada pedra,
Há um monstrengo que espreita
Gordo, impassível, seguro,
E que a cada dia medra
More, embora, em fenda estreita
*
Estende as disformes narinas
Pra melhor nos farejar
E saber o instante exacto
Em que cruzamos esquinas
Para confraternizar
Bebendo um café barato...
*
Para este drago medonho
Somos facílimas presas,
Basta-lhe abrir a bocarra
E esquecer que sonho a sonho
Crescem as nossas defesas
Contra quem nos lança a garra
*
Se tivesse ouvido um homem
O que disse uma mulher
Que sobre o p`rigo alertava...
Mas fez-se mouco e hoje escorrem
De uma parede qualquer
Despojos seus: sangue e lava
*
Por ora, o monstro preguiça,
Tem-nos por já garantidos
Por isso tanto boceja
Que quando uma voz se atiça
Já não lhe chega aos ouvidos,
Vai esmorecendo, fraqueja...
*
Nenhum dos homens o viu,
Só ela, mulher madura
Capaz de amar mal amados,
Ao sentir um calafrio
Sai à rua a ver se apura
O que a traz em tais cuidados
*
Nada sabe, mas pressente
Que algo de errado se passa
Na rua agora deserta
E mui diligentemente
Entra (in)segura na praça
Quando o mostrengo desperta
*
Ouve, então, um ronco rouco,
A sair da estreita fenda
Onde o monstro adormecera
E faz o eco de um pouco
Uma zoeira tremenda,
Pior que de besta ou fera...
*
Corre a mulher a avisar
Os companheiros de mesa
Do que ali testemunhou
E ninguém quis confirmar:
Nem uma lanterna acesa
Da praça se aproximou
*
Rogava, aflita, a mulher
Que alguém à rua descesse
Antes que o monstro atacasse:
- Mulher, que monstro te quer?
Bebe mais um copo e esquece,
Pode ser que o susto passe...
*
Homem, eu sei o que digo!
Na praça, ali bem defronte,
Esconde-se um monstro, uma fera!
Levanta-te e vem comigo
Até à beira da ponte...
Bem mais arrisca quem espera!
*
Mulher, tu julgas que ouviste!
Foi rabanada de vento,
Talvez cachorros à briga...
- Não julgo, ouvi!, ela insiste,
Mas aquele homem descrente
Só crê na própria barriga
*
Depois deu-se o impensável:
O solo abanou, gemeu,
As habitações ruíram,
Nem palmo de terra estável
Sob o negro, negro céu
Do qual os astros fugiram
*
Agora, no mundo inteiro,
Perdura a noite maldita
Que as mulher`s adivinharam
Trazer tais monstros ao cheiro
Do sangue e da carne aflita
Dos homens que devoraram
*
Só as mulheres aluadas
Como a tal mulher madura
Capaz de amar mal amados,
Foram à morte poupadas
Embora não à tortura
De ver os seus aos bocados
*
E, hoje, em cada cidade,
Cada vila e cada aldeia,
Passeia-se alienada
Uma mulher que a saudade
Tornou dura, amarga e feia,
Mas conservou escravizada
*
Pra consolo dos dragões
A quem agrada a presença
De umas tantas mortas/vivas
Sem sonhos nem ilusões,
Sem nada que lhes pertença,
Mas para sempre cativas
*
De um rasgo de lucidez,
De uma incerteza certeira
Que tomada por incerta
Deu azo àquilo que lês
Nesta estória inverdadeira
(ou será isto um alerta?)
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Mª João Brito de Sousa
08.12. 2024 - 13.30h
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