ESPIRAL
ESPIRAL
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(Décimas)
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I
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Da espiral na qual me afundo
E em que lentamente expiro
Curva a curva, giro a giro,
Melhor enxergo este mundo,
Mais com a vida me fundo
Se daqui, do meu retiro,
Vou, de suspiro em suspiro,
Até Algés ou Dafundo,
A mil anos por segundo
Do tempo em que hoje me insiro.
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II
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Tantas horas, dias, anos,
Vão girando na espiral
Da minha vida real
De alegrias e de enganos
Entre animais e humanos
Que, uns por bem, outros por mal,
Vão deixando o seu sinal,
Ou mesmo causando danos,
Inocentes, que em seus planos
Não estava fazer-me mal.
*
III
*
Depois, em sentido inverso,
Roda a espiral. Traz consigo
Um pouco do tempo antigo
Em mil poemas disperso
E que vai da cova ao berço;
Monda o pasto, ceifa o trigo,
Quebra a noz, colhe-me um figo,
Restaura-me o velho terço
E, às vezes, deslinda um verso
Que eu quase sempre bendigo.
*
IV
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Vai e vem, espiral, não pares
De rodar dessa maneira;
Faz-me girar toda inteira,
Vai aos meus ancestrais lares
E entrega-me o que encontrares
Da minha canção primeira...
Traz-me as chamas da lareira
E o sal das ondas-altares
Que ergui na abstracção dos mares
Em que me fiz marinheira!
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Maria João Brito de Sousa - 23.06.2020 - 19.30h