A CRIAÇÃO DAS BARCAS - Reedição
A CRIAÇÃO DAS BARCAS
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Minha terra espreguiçada
Entre Tejo e mar bravio,
Crescendo ao longo do rio,
Pelas ondas abraçada
Como se fora, apressada,
Mergulhar no leito frio
Onde avistasse navio
Em que embarcasse assombrada
Trocando tudo por nada
Em resposta ao desafio!
*
Barca em que vivo e cresci
Desde que a mim me recordo,
Fruto que afago e que mordo
Tanta vez quantas mordi
Palavras que aqui teci
Numa presunção de acordo
No qual o poema engordo
Com as coisas que aprendi
Desde o dia em que nasci
E, ao nascer, saltei pra bordo
*
Pisando o velho convés,
Tomando os remos nas mãos,
Vencendo os tormentos vãos,
Correndo-a de lés a lés
Como se sob os meus pés,
Junto aos pés dos meus irmãos,
Brotassem sonhos tão sãos
Que derrubassem, de vez,
A voragem das marés
Que afogam concidadãos...
*
Barca ideada por mim
E por mais mil que, a meu lado,
Fazem do sonho ideado
Luta, projecto e, por fim,
Constroem cama e jardim
Onde era um nada... E nem brado
Seria tido ou achado
Se ninguém sonhasse assim,
Mudando aspereza em cetim
E deserto em verde prado
*
Onda bravia ou corcel,
Barca em madeira e também
Berço em que dormisse alguém,
Mal um prenúncio de mel
Vencendo agruras de fel
O compelisse a ser mãe
De quanto à espécie convém:
Filhos da carne a cinzel,
Foice e martelo e pincel,
Vindos de um sonho que tem!
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Maria João Brito de Sousa
17.10.2014 – 14.06h
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In Antologia Tertúlia da Gandaia
Hórus Editores, 2016
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