CANTE
Não tem azeite nem alho
com que prepare uma açorda...
não tem côdea que se morda,
mas não lhe falta trabalho
e quando à noite, ao borralho,
se senta, pensa na corda*
que guarda e que, hoje, recorda,
pensando, “É isto, o que eu valho?
Tal como o Sol, nunca falho
E assim que o galo me acorda
Ponho-me logo de pé,
sacudo a manta da esteira,
acendo a velha lareira
pr`aquecer sonho e café,
ponho a samarra, o boné,
e vou-me fazendo à feira**
pela estrada da canseira
que o dia prometa e dê
a qualquer homem de fé
(que a tenho, à minha maneira...)
Vou roendo a côdea escura
da fatia amanhecida
que sempre que é consumida
me parece ser mais dura
e encho o meu peito à procura
de canção menos dorida,
mas sai-me a voz, não vencida,
no “cante” que em mim perdura...
Não havendo outra fartura,
é del` que encho a própria vida!”
Maria João Brito de Sousa – 14.07.2015
*Corda – alusão, velada, ao pensamento suicida
** Feira – qualquer dia da semana
Poema dedicado ao meu avô paterno, por ser poeta, e ao materno, por ser alentejano.
A António de Sousa
A Frederico Belo Bazilio