Falhado! Não passas de um merdoso falhado!,
Gritava ela para o rádio de pilhas, coberto de fita-cola, que padecia de mudez total.
- Canta comigo ou canta para mim! Foi para isso que te comprei! E encanta-me… e faz-me dançar!
Ele ouvia-a com a paciência de um pai experiente, aturando a milésima birra de uma filha insuportavelmente exigente. Tangeu, baixinho, uns acordes pouco audíveis. Procurou no ar a onda que escapara e pôs-se, finalmente,
a cantar para ela, em altos decibéis, sem sombra de desafinação.
- Cranberries! Canta Cranberries!, exigiu ela, já sorridente, mas ainda insatisfeita. O infeliz perguntava-se que mal teria feito, na encarnação em que fora candeeiro de calçada, para merecer uma companheira daquelas…
Vieram os Cranberries por obra e graça de uma onda curtíssima que pediu emprestada ao gravador do vizinho do lado.
Ela cantava, dançava e ria, coisa que o deixava estranhamente perturbado. Não fazia qualquer sentido, mas a verdade verdadinha é que ela, sempre que cantava, ria ou chorava… isso captava ele, perfeitamente, no seu circuito integrado… ou integrante.
Ele, apesar dos desconcertos, gostava dela e tudo fazia para lhe agradar mesmo quando os sons que ela emitia o confundiam até à mudez.
- “Tudo o que te dou”…, pedia ela com um sorriso infantil.
- Tudo o que te dou…, repetiu ele. E calou-se.
Ela compreendeu que ele estava cansado. Sentou-se junto dele e adormeceu.
Durante toda a tarde ele ansiou ser homem e ela sonhou ser apenas melodia.